terça-feira, 5 de agosto de 2008

Os saberes de cada um

Os saberes de cada um
Rubem Alves

O galinheiro estava em polvoroso. Cocorocós de galos, cacarejos de galinhas, tofracos de angolinhas, pios de pintinhos – tudo se misturava num barulho infernal. Todos haviam sido convocados a uma assembléia pelo Chanceler, o galo prefeito do galinheiro, para tratar de um assunto de grande importância: o fato de vários ovos chocados pela Cocota terem sido comidos por um ladrão, num breve momento em que ela abandonara o ninho para comer milho e beber água.
As pegadas eram inconfundíveis: o ladrão era uma raposa. Raposas são animais muito perigosos. Comem não somente ovos, como também pintinhos e mesmo galinhas mais crescidas. Com um sonoro cocoricocó, Chanceler pediu silencio, expôs o problema e franqueou a palavra.
Encarapitado no galho de uma goiabeira, um galinho garnizé cantou estridente. Era o Mundico. Ele adorava discursar, “Companheiros”, ele começou, “peço a atenção de vocês para as ponderações que vou fazer acerca da crise conjuntural em que nos encontramos. Charles Darwin dói o primeiro a mostrar que a historia dos bichos é marcada pela luta em que os mais fortes devoram os mais fracos. Os leões comem os veados, os lobos comem os cordeiros, os gaviões comem as pombas, as raposas comem as galinhas. Os mais aptos sobrevivem, os outros morrem”.
“Assim, a crise conjuntural em que nos encontramos nada mais é que uma manifestação da realidade estrutural que rege a história dos bicos. E o que é que faz com que as raposas sejam mais aptas do que nós? As raposas são mais aptas e nos devoram porque elas detêm o monopólio do saber que nós não tempos. Somente nos libertaremos do jugo das raposas quando nos apropriarmos dos saberes que elas têm”.
“Como se transmitem os saberes? Por meio da educação. Sugiro então que empreendamos uma reforma em nossos currículos e programas. Se, até hoje, nossos currículos e programas ensinavam aos nossos filhos saberes galináceos, de hoje em diante eles ensinarão saberes de raposa”.
“Primeiro, teremos de educar os nossos olhos pra eu eles passem a ver como vêem as raposas. Onde é que as raposas tem os seus olhos? Na frente do focinho. E nós? Onde estão os nossos olhos? Do lado. Educaremos os nossos olhos para que eles olhem para frente, como as raposas”.
“Segundo: teremos de reeducar o nosso andar. Raposas andam com quatro patas. Por isso valem o dobro de nós, que só temos duas. Como transformar duas patas em quatro? Nós, galinhas e galos, bípedes, passaremos a andar aos pares, um na frente, outro atrás, o de trás segurando o traseiro do que vai à frente, e assim seremos quadrúpedes.”
“Terceiro: as raposas têm pêlos, enquanto nós temos penas. Teremos que nos livrar de nossas penas para que no seu lugar cresçam pêlos. E os nossos rabos, ridículos uropígios, estimulados pelos pêlos, se alongarão para trás e se transformarão em rabos de raposa.”
“Quarto: as raposas têm focinho e nós temos bicos. Mas o que é um focinho? Focinho é uma coisa sem bico. Ora, bastará que extraiamos os nossos bicos para termos focinhos, como as raposas. Assim, pela educação, nos apropriaremos dos saberes das raposas, espécie que por tantos milênios nos tem dominado. Será, então, o advento da liberdade”.
Mundico se calou. Todos estavam “biqueabertos” com sua eloqüência. E todos concordaram com o seu projeto educacional. Galos e galinhas arrancaram umas às outras as suas penas e, peladas, aguardaram o crescimento dos pêlos. Por meio de exercícios apropriados, movimentavam seus olhos para que eles aprendessem a olhar para frente. Desbicaram-se, lixando seus bicos em pedras ásperas . e andavam, como Mundico dissera, aos pares um na frente do outro agarrados atrás...
Mas parece que o currículo de raposa não deu resultado. A raposa continuou a comer ovos dos ninhos e chegou mesmo a devorar um pintinho distraído. Acharam que ela tivesse também devorado o Sesfredo, um galo velho de pescoço pelado, vermelho, e que cantava com sotaque caipira.
Convocou-se outra assembléia. Toda a população do galinheiro compareceu. Para surpresa de todos, até mesmo o Sesfredo, que tomou lugar num galho de uma árvore muito alta, onde nenhum outro galo ou galinha jamais fora. “a gente pensou que você tinha sido devorado pela raposa”, cantou o Godofredo, forte galo índio. “Que nada”, disse Sesfredo. “É que me internei no SPA do Urubuzão para fazer uma reciclagem de vôo. Urubu é ave como nós. Mas raposa não come urubu. Raposa não come urubu porque urubu sabe voar. Raposas comem galos e galinhas porque desaprendemos o uso de nossas asas...”
Nesse momento uma angolinha que ficara de sentinela deu alarme: “aí vem a raposa, aí vem a raposa, aí vem a raposa...” Foi uma correria, cada um correndo para um lado. Mas ninguém sabia voar. A raposa, valendo-se da confusão, abocanhou uma galinha garnizé, já depenada e desbicada...
Todo mundo entrou em pânico. Menos o Sesfredo. Lá de cima, ele abriu as asas e voou alto, muito alto, até parecia um urubu... Assim é: ave que sabe voar, raposa não consegue pegar.
Alguns há que justificam os currículos de nossas escolas dizendo que é preciso que as classes dominadas se apropriem dos saberes das classes dominantes. Há muitos Mundicos por aí.


Rubem Alves, é Rubem Alves...

fOrTe abraço,

Marco Aurelio

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